No momento em que os partidos políticos brasileiros inspiram desconfiança, de acordo com pesquisas de opinião entre os brasileiros, o Supremo Tribunal Federal analisa nesta quarta-feira pedido para permitir que pessoas sem filiação possam ser candidatos independentes, ou seja, descolados de legenda.
Para defensores da proposta, candidaturas independentes criarão uma competição saudável que forçará os partidos a melhorarem sua representatividade junto à população. Seria um estímulo para que as agremiações reforçassem seus posicionamentos ideológicos e reduzissem comportamentos fisiológicos. Eles ressaltam que a maioria dos países no mundo permite esse tipo de disputa.
Já os opositores acreditam que essa possibilidade enfraquecerá os partidos, que dizem ser estruturas essenciais para o funcionamento da democracia. Além disso, a medida estimularia personalismos e privilegiaria as figuras em detrimento das ideias que podem melhorar o país. Se for aprovada, a candidatura avulsa também seria de difícil implementação no atual sistema eleitoral.
Entenda melhor o que está em jogo e quais os impactos que uma decisão favorável aos candidatos independentes poderia trazer.
O que será analisado no STF?
Os onze ministros avaliarão recurso do advogado Rodrigo Sobrosa Mezzomo, que no ano passado tentou concorrer sem partido à Prefeitura do Rio de Janeiro, mas teve o registro negado pela Justiça Eleitoral.
A decisão do Tribunal Superior Eleitoral contra ele foi unânime e na ocasião votaram três ministros do STF que compõem também aquela corte - Gilmar Mendes, Rosa Weber e Luiz Fux. Eles aplicaram o artigo 14 da Constituição Federal que prevê que a "filiação partidária" é "condição de elegibilidade".
Mezzomo argumenta que a exigência de partido político contraria outros princípios da própria Constituição, como o da cidadania, dignidade da pessoa humana e pluralismo político.
Além disso, sustenta, desrespeita acordos internacionais assinados pelo Brasil, como a Convenção Americana de Direitos Humanos, também chamado de Pacto de San José da Costa Rica, ratificada pelo Brasil em 1992. Esse tratado prevê que "todos os cidadãos" devem ter direito a "participar da direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos".
Defensor da candidatura livre, o jurista Modesto Carvalhosa, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que o Supremo, em outras decisões, já aceitou que, em matéria de direitos humanos, pactos internacionais podem prevalecer sobre a Constituição. Ele nota também que a própria Carta Magna prevê que convenções internacionais sobre direitos humanos aprovadas pelo Congresso Brasileiro equivalem a emendas constitucionais.
Se o STF autorizar, Carvalhosa é um dos que pretende concorrer a presidente sem partido no próximo ano. "Não podemos mais ficar sob o jugo de partidos políticos totalmente comprometidos com a corrupção e não queremos mais políticos profissionais", argumentou.
Já o senador Roberto Requião (PMDB-PR) diz que, se o Supremo aceitar o pedido, estaria desrespeitando a Constituição. "A Constituição não permite. A não ser que o Supremo decida agora escrever uma nova Constituição. Talvez acabe se tornando um colegiado e ele mesmo eleja um presidente", ironiza.
"Não tem cabimento isso. Os partidos políticos são fundamentais para a organização (política). Se não se transforma numa aventura", critica ainda.
Movimentos x partidos
Movimentos da sociedade civil que têm se articulado em torno de novas candidaturas estão entre os que defendem que o STF libere a disputa eleitoral sem partido. É o caso, por exemplo, do Acredite, da Bancada Ativista e do Movimento Brasil Livre (MBL) - os dois últimos chegaram a lançar candidatos em 2016, a Bancada Ativista por Rede e Psol, e o MBL por DEM e PSDB, entre outros partidos.
Para o coordenador nacional do Acredite, José Frederico Lyra, a possibilidade de candidatura independente deve ser acompanhada de outras medidas que melhorem o sistema político. Entre as melhorias, ele cita o fim das coligações nas disputas para o legislativo (que permite que votos para um partido elejam candidatos de outro, sem coerência ideológica) e a criação de uma cláusula de barreira para que os partidos tenham acesso ao fundo partidário e a espaço na propaganda de rádio e TV. Ambas as medidas foram aprovadas nesta terça-feira pelo Senado e já devem valer nos pleitos de 2020 e 2018, respectivamente.
"Não achamos que a candidatura independente vai resolver o problema (político), mas vai estimular os partidos a melhorarem. Os partidos são importantes, mas não precisam ter monopólio", afirmou Lyra.
Já Antonio Lavareda, professor de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), vê com maus olhos a ideia. Para ele, as candidaturas livres tendem a agravar o que ele considera o maior problema hoje da política brasileira: a "hiperfragmentação" do Congresso Nacional, onde hoje estão presentes 25 partidos. Na sua avaliação, isso dificulta a governabilidade e favorece a corrupção.
"O caminho é fortalecer os partidos, não enfraquecê-los de vez", defendeu.
Para o senador Humberto Costa (PT-PE), permitir candidatura livre "seria uma das últimas pás de cal no que ainda resta de democracia no Brasil".
"Hoje, mesmo com a exigência de filiação de partidos, nós temos votos em pessoas, não em ideias, em ideologia. Imagina você ter eleição avulsa? Democracia se faz por intermédio das ideias. E os partidos expressam, ou deveriam expressar ideias, são coletivos. Não acredito na mudança ou no processo de governabilidade em cima de pessoas", argumentou.
Como funciona em outros países?
O projeto ACE, banco de dados sobre sistemas eleitorais mantido por respeitadas organizações internacionais, mostra que apenas 21 países do mundo não permitem qualquer tipo de candidatura livre. Ao lado do Brasil, estão países como Argentina, Uruguai, África do Sul e Suécia.
Parte dos países autoriza esse tipo de disputa em apenas alguns cargos. Já 93 nações (43% do total) prevêem essa possibilidade tanto para disputa presidencial como para o Legislativo - a lista reúne Estados Unidos, México, Chile, Colômbia, França, Rússia, Índia, Egito e Moçambique.
O caso mais citado hoje nas discussões sobre o tema no Brasil é a eleição de Emmanuel Macron em maio como presidente francês. Ele ganhou a disputa sem filiação partidária, sustentado pelo movimento En Marche! (Em Marcha!) - no entanto, logo depois da sua vitória, o movimento foi transformado em um partido, o República em Marcha, e teve expressivo desempenho na eleição legislativa de junho.
O cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ressalta que o sistema francês, embora não exija a filiação partidário, não permite que qualquer um se inscreva livremente para concorrer. Para ser candidato a presidência, é preciso o apoio formal de ao menos 500 lideranças políticas (prefeitos, senadores, deputados, etc).
À BBC Brasil, apoiadores da candidatura livre defenderam que sistema semelhante funcione no Brasil. "É importante haver algum critério para aprovação do registro de candidaturas independentes, como um número mínimo de assinaturas de eleitores apoiando cada candidatura, para evitar aventureiros sem nenhum projeto ou nenhuma base de apoio", respondeu a Bancada Ativista, por email.
"Concorrer sem partido não significa dizer que não deveria ter apoio da sociedade para ser candidato. Exigir assinaturas de apoio seria saudável", observou o coordenador nacional do Acredite, Zé Frederico.
Frederico conta que uma das palestras que assistiu no mestrado em políticas públicas que fez em Havard foi do ex-prefeito de Medellín (Colômbia), Sergio Fajardo, eleito sem partido.
"Ele comentou: 'Todo mundo gosta dessa história de independente, achando que eu saí sozinho candidato, mas foi um movimento de uma cidade inteira, que naquela época não se indentificava com nenhum partido, e eu acabei por ser o representante'. Acho que essa história ilustra bem a proposta", ressaltou.
E se o Supremo autorizar, o que acontece?
Monteiro considera que a possibilidade de candidatura seria algo positivo para "modernizar" a democracia brasileira. Ele ressalta, porém, que sua adoção não é algo simples.
Uma eventual decisão do Supremo nessa direção exigiria mudanças no atual sistema eleitoral para prever como esses candidatos vão ser financiados ou terão acesso a tempo gratuito de propaganda de TV na campanha.
Hoje, esses recursos são repartidos entre os partidos de acordo com o tamanho de sua bancada na Câmara dos Deputados. Como o Supremo proibiu doações de empresas, os candidatos agora só podem ser financiados por recursos públicos ou doações de pessoas físicas (até 10% da renda bruta). Não há porém, limites para autodoação, o que favorece candidatos ricos, como empresários e celebridades.
Outro ponto complexo é a eleição de deputados federais, estaduais e vereadores, pois, no atual sistema proporcional, os votos em um mesmo partido são somados e redistribuídos entre os candidatos da legenda. Isso aumenta as chances de que mais candidatos da sigla atinjam o coeficiente mínimo de votos necessários para conseguir uma vaga.
"Candidatos independentes teriam muita dificuldade em somar os votos necessários", acredita Monteiro. "Por isso, acredito que, se o Supremo liberar a candidatura sem partido o impacto maior seria na disputa presidencial. João Dória (prefeito de São Paulo), por exemplo, poderia ser um candidato sem partido", nota o professor.